CUBERO, Jaime. "Reflexos da Revolução Russa No Brasil"

Boletim do Centro de Cultura Social - SP, nº 24, setembro: 3/2007

Revolução soviética de 1917 CUBERO, Jaime

Os fundadores da I Associação Internacional
dos Trabalhadores (AIT)
jamais poderiam imaginar os rumos que
tomariam as idéias socialistas quando, face
à questão do proletariado, em janeiro de
1859, propunham: “...a negação absoluta
de todos os privilégios; negação absoluta
de toda autoridade e a emancipação do
proletariado... O governo social não pode
ser mais do que uma administração
nomeada pelo povo, submetida ao seu
controle e sempre revogável quando for
julgado inconveniente”. Tinham uma visão
clara e objetiva de seus propósitos e
finalidades. [1]
Durante os congressos da AIT foram-se aprofundando as diferenças entre
as correntes que culminaram com a divisão clara entre socialismo libertário
(anarquista) e socialismo autoritário (marxismo). Bakunin e seus companheiros,
preconizavam o socialismo libertário, ação direta revolucionária para destruir o
Estado e as instituições burguesas e capitalistas; Marx defendia o comunismo
estatal, autoritário, pela conquista do poder e, a partir do Estado, fazer a revolução
transformadora, com uma elite dirigente do partido único que instalasse a
“ditadura do proletariado”.
Quando, após o 5º Congresso, realizado em Haia, em 1892, Marx e seus
seguidores decidem transferir o Congresso Geral da AIT para os Estados Unidos,
acabando praticamente com a I Internacional – posteriormente reconstituída e
existindo até hoje com orientação e estrutura anarco-sindicalista – os anarquistas
passaram a atuar no movimento operário e os marxistas em partidos políticos
para a conquista do poder via parlamento através da II Internacional.
O movimento anarquista de massa se desenvolve imbricado ao movimento
operário em muitos países e no Brasil o anarco-sindicalismo se constitui num
poderoso agente histórico, responsável pela emergência da classe operária e
pelas conquistas dos trabalhadores, posteriormente condensados na legislação
trabalhista.
O ano de 1917 foi extraordinariamente marcado por acontecimentos que
apontavam para profundas mudanças no mundo. A Revolução de Fevereiro na
Rússia, provocando a queda do Czar, repercute profundamente no Brasil, e os
anarquistas passam a dedicar grandes esforços em prol dos revolucionários
russos, inclusive com campanhas financeiras.
Depois da greve geral de 1917, apesar da intensa repressão, o movimento se
desenvolve de forma extraordinária, chegando a publicar jornais diários como
A Plebe e A Vanguarda.
A Revolução de Outubro de 1917 é
recebida como uma revolução libertária,
saudada com entusiasmo pelo movimento
anarquista. As expectativas são enormes e uma
série de atividades se desenvolve como
conseqüência. Enquanto na Rússia se
desenrola a tremenda luta do Movimento
Makhnovista (anarquista) contra as tropas de
Wrangel e Deninkin (1918-1921) garantindo
a vitória da revolução e estabelecendo uma
verdadeira organização libertária nos campos
da Ucrânia, garantindo inclusive o abastecimento
de trigo em Moscou; enquanto os
exércitos regulares do governo soviético,
comandados por Trotski, depois da certeza
de que os generais czaristas e as tropas
invasoras tinham sido aniquilados pelas forças
makhnovistas e já não ofereciam perigo,
atacam traiçoeiramente o movimento,
descumprindo os pactos feitos anteriormente e fuzilando muitos dos seus
participantes; enquanto ainda em março de 1921 se desenrola o massacre dos
marinheiros do Kronstad por defenderem os operários e o princípio proclamado
por Lenin, “todo poder para os sovietes”, antes de que o poder dos bolchevistas
se consolidasse e passasse a vigorar a ditadura férrea dos capatazes do partido,
no Brasil os anarco-sindicalistas passam a criar organizações sob o signo do
que era então chamado de maximalismo
ou maximismo. Em vários
pontos do país surgem agrupamentos
denominados maximalistas ou comunistas,
como em Porto Alegre o “Grupo
Maximalista”, no Recife “Círculo
Maximalista” e até “Liga Comunista
Feminina” no Rio de Janeiro etc etc.
Nas comemorações, nos comícios,
nas assembléias das associações de
trabalhadores exaltava-se a Revolução
Russa com discursos inflamados de
solidariedade, sempre imbuídos do
caráter libertário, anarquista.
A comemoração do dia 1º de maio de 1918 foi marcadamente voltada para a
Revolução Russa, não só pelos atos realizados como pelas matérias publicadas
nos jornais do movimento. Num período de muita agitação e muitas greves
devemos destacar a chamada “Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro”. A
partir do que alguns chamaram de “Soviete do Rio”, organiza-se um movimento
insurrecional tendo à frente os militantes anarquistas que mais haviam se
destacado durante o ano de propaganda libertária com artigos na imprensa,
conferências, cursos e palestras nos sindicatos operários.
Com base numa greve geral se pretendia pela força das armas derrubar o
governo constituído, e a “exemplo da Rússia”, formar uma junta de operários e
soldados que abrisse caminho para a construção de uma sociedade sem classes
e sem exploração, sem Estado e sem dominação.
A data escolhida foi 18 de novembro de 1918. Foi marcada uma concentração
no Campo de São Cristóvão. Entre 15 e 16 horas os trabalhadores têxteis do Rio
e cidades vizinhas paralisaram o trabalho, assim como os metalúrgicos e os
operários da construção civil. Muitos grupos operários foram engrossando a massa.
Soldados da Brigada Policial ameaçaram empregar a força prendendo os mais
exaltados. No confronto, tiroteio intenso e bombas, explosão de carro da polícia
e fuga precipitada dos operários. O plano previa atacar a Intendência de Guerra
na expectativa de que os soldados confraternizassem com eles. Dinamitariam o
edifício da Prefeitura, atacariam o Palácio e o Quartel General da Brigada Policial.
Enquanto isso, outros atacariam o Palácio do Catete e em seguida o da Câmara
prendendo o maior número de deputados possível e proclamariam o Conselho
de Operários e Soldados. Na expectativa alimentada pela experiência da Rússia,
pelo processo revolucionário da Alemanha onde as tropas se juntavam ao povo,
esperavam a adesão dos escalões inferiores das Forças Armadas.
Entretanto, os soldados do Exército e os da Brigada Policial não aderiram e
cumpriram com rigor seu papel de carrascos do povo. E mais que isso, haviam sido
preparados antecipadamente, pois foi um militar, o tenente do Exército Jorge
Elias Ajus, o responsável imediato pelo fracasso da insurreição. Infiltrado no
movimento, passando-se por anarquista, informava os superiores com detalhes
dos preparativos da insurreição. Enganando a todos, ele era o responsável pela
estratégia militar do levante. Assistia todas as reuniões na residência e no escritório
de José Oiticica, que foi preso por volta de 14 horas em seu escritório. Entre os
muitos presos estavam Astrogildo Pereira, José Elias da Silva e João da Costa
Pimenta que depois participariam da fundação do Partido Comunista Brasileiro.
José Oiticica, sendo indicado presidente do Conselho durante os preparativos e
como a principal figura no episódio chegou a ser chamado de “Lenin Brasileiro”.
Os grupos chamados maximalistas proliferaram, todos defendendo princípios
libertários, e a partir destes princípios os anarquistas do Rio de Janeiro fundam
o Partido Comunista Libertário, em 8 de março de 1919, com adesão das ligas
comunistas e maximalistas.
Tudo influía para fazer acreditar que a sociedade socialista libertária viria da
Rússia. Kropotkin e Bakunin eram exaltados como grandes figuras do processo
revolucionário.
O Partido Comunista Libertário lança as bases de acordo em março de 1919
e marca um congresso para junho. O secretário-redator dos princípios e fins,
José Oiticica, é impedido pela polícia de comparecer mas publica em redação
definitiva, no jornal anarquista Spartacus, de 16 de agosto de 1919, o que seria o
catecismo comunista. Um longo programa em que ao mesmo tempo que uma
série de definições sobre princípios e propostas para a reorganização social.
Para o anarquista, comunismo libertário e anarquismo eram sinônimos, daí a
expressão “comunista” ser muito usado na época.
que é Maximsmo ou Bolchevismo – Programa Comunista, por Hélio Negro e Edgard
Leuenroth. Depois de uma “Explicação Prévia” o livro se inicia dizendo: “Este
livro destina-se aos trabalhadores do Brasil, a fim de lhes dizer o que é Bolchevismo
ou Maximismo e o ‘Comunismo’ que numa palavra – é o socialismo” e mais adiante:
“Atualmente, na Rússia, conforme a sua constituição, aprovada em janeiro de
1918 pelo 3º Congresso Pan-Russo dos sovietes, está estabelecida uma
organização política e econômica de transição que dá aos trabalhadores e soldados
o poder da nação”, e prossegue, “O capítulo V – art. 9 determina que o princípio
essencial da constituição da República Federal dos sovietes no período de
transição atual, enquanto durar a situação revolucionária, reside na instauração
do poder do proletariado urbano e rural e dos camponeses mais pobres, com fim de
suprimir a exploração do homem pelo homem e de fazer triunfar o socialismo sob cujo regime
não haverá divisão de classes, nem poder de Estado”.
Seguem-se uma série de medidas que pressupõem o caminho para o tão
almejado comunismo libertário. Depois de uma análise crítica da conjuntura
nacional, inclusive com estatísticas econômicas etc., expõe a organização dos
trabalhadores que pode promover a revolução social. Em seguida, o livro
apresenta o Esboço de Programa Comunista com as normas e diretrizes para a
reorganização da sociedade, tratando de “Serviços Públicos”, instrução, produção
e distribuição de bens, saúde, religião, relações internacionais etc. etc.
O Partido Comunista Libertário foi se diluindo aos poucos até desaparecer,
à medida que as notícias, embora desencontradas, começaram a chegar apontando
os desvios da Revolução Russa, já em fins de 1919 e durante 1920.
Muitas informações eram tidas sob suspeita, sob pretexto de que eram
veiculadas pela imprensa burguesa. Denunciar o que vinha ocorrendo na Rússia
requerida convicções firmes e muita coragem.
Florentino de Carvalho foi o primeiro anarquista brasileiro de projeção a
atacar os bolchevistas russos. Em 20 de março 1920 ele escreve em A Plebe:
“Não é verdade que os anarquistas sejam partidários da ditadura, da lei, do
Estado. Na Rússia, por exemplo, tanto não estão conformes com a ditadura do
proletariado, que chegaram a sustentar contra os maximistas, verdadeiras batalhas
nas ruas de Petrogrado e Moscou”.
Quando à maioria dos anarquistas brasileiros acreditava que tais relatos eram
simples deturpações da imprensa burguesa, as controvérsias se multiplicam e o
próprio Florentino de Carvalho, em setembro, denunciava a criação do Partido
Comunista Libertário, afirmando possuir documentos para provar que o regime
russo “é essencialmente contrário aos nossos princípios”.
Manifestações contundentes se multiplicam contra os bolchevistas na medida
em que as notícias sobre o massacre de anarquistas e socialistas revolucionários
chegam ao Brasil.
Durante os primeiros meses de 1921, um emissário do regime russo procura
Edgard Leuenroth propondo-lhe a fundação do Partido Comunista do Brasil,
ante sua recusa, pede-lhe que indique outra pessoa. Leuenroth indica Astrogildo
Pereira que insistia nessa idéia sob a alegação de que era o caminho mais curto
e eficaz para chegar ao socialismo libertário. Astrogildo ainda acreditava que a
Revolução Russa era o caminho.
O Partido Comunista do Brasil foi fundado num congresso realizado no Rio
de Janeiro de 25 a 27 de março de 1922, por 11 ex-anarquistas e um socialista.
A campanha antianarquista conduzida pelo PCB começou em abril de 1922,
com artigo de Antonio Bernardo Canellas, na publicação Movimento Comunista.
Canellas, o mesmo que foi delegado do PCB ao 4º Congresso da 3ª Internacional,
em Moscou, e voltou denunciando as atrocidades do regime soviético. A partir
do seu relatório publicado à revelia do partido se instala uma verdadeira guerra
entre anarquistas e bolchevistas, onde se destacam José Oiticica, Edgard
Leuenroth, Florentino de Carvalho e outros.
No 2º Congresso da 3ª Internacional (Comintern) Lenin apresenta os famosos
“21 princípios” segundo os quais, na formação dos partidos comunistas nacionais,
subordinados a Moscou, as
organizações operárias que não
pudessem ser cooptadas deveriam
ser destruídas. Segundo Lenin “a
missão da forma não é convencer,
mas dispersar as filas dos adversários,
não é melhorar os seus defeitos, mas
aniquilar a sua organização e a sua
atividade, extirpá-las da Terra. A
forma deve ser tal que insite aos
piores pensamentos e à sua suspeita,
e leve o caos e a desorientação às
fileiras do proletariado”.
A aplicação das rígidas
instruções de Moscou levam os
bolchevistas brasileiros a criar a
chamada “Tcheca do Brasil”
verdadeiro “Esquadrão da Morte”
destinado a eliminar militantes
anarquistas, matando Antonino
Domingues e outros companheiros.
Tentativa de assassinato de José Oiticica e outros. Eles tumultuavam as reuniões das entidades operárias
impedindo que os trabalhos se desenvolvessem. A ação dos comunistas foi
mais deletéria ao movimento operário do que as perseguições da polícia e todas
as formas de repressão. Seria exaustivo registrar de forma circunscrita e exigiria
volumes, o que foi a ação do PCB contra os anarquistas e o movimento operário.
Traições, calúnias usando rótulos mentirosos, empregando os mais sórdidos
recursos para cumprir as ordens vindas de Moscou.
Quando toda a imprensa burguesa internacional fazia guerra contra a
Revolução Russa, a posição dos anarquistas, denunciando seus desvios e
atrocidades, era no mínimo incômoda. Daí o rótulo, de profunda má-fé, de
“pequenos burgueses” que os bolchevistas aplicaram aos anarquistas.
Os anarquistas, além da luta tenaz contra as instituições burguesas, passaram
a sustentar uma verdadeira guerra contra a impostura bolchevista. Além do
número incalculável de artigos na imprensa libertária, lembramos entre outros
os de José Oiticica na grande imprensa, como Jornal do Brasil, Correio da Manhã,
e apenas como exemplo a série de artigos publicados no jornal A Pátria, em
junho de 1928, sob o título “Como Eles Mentem”. O primeiro artigo de uma
série de 10 se inicia com as seguintes frases, que permitem aquilatar a violência
da linguagem: “Às injúrias da caterva bolchevista, nós anarquistas, respondemos
com fatos. É o melhor argumento, o único verdadeiramente valioso para os
trabalhadores. Para isolá-los do miasma soviético basta-nos ir desfazendo, uma
por uma, as imposturas empacotadas em Moscou, despachadas pelo mundo
afora e distribuídas aos incautos...tenho tido ocasiões várias de patentear
despudoradas mentiras bolchevistas e cumpre-me agora nessa missão higiênica,
opor creolina às invencionices da Internacional Sindical Vermelha...”
O reflexo do movimento anarquista no Brasil deu-se em conseqüência de
uma série de fatores, cujas coordenadas culminaram com o golpe de Estado
getulista em novembro de 1937 e a ação do PCB foi de importância muito
relativa, ao contrário do que muitos pretenderam fazer crer, por
desconhecimento ou má-fé. Basta dizer que quando os anarquistas se
empenhavam na luta antifascista, quando se deu o confronto com os integralistas,
na Praça da Sé, em outubro de 1934, o PCB, segundo seus próprios dados
publicados na revista Divulgação Marxista, contava com aproximadamente 1000
filiados em todo o território nacional, contra mais de 80 sindicatos filiados só
na Federação Operária de São Paulo, entidade anarco-sindicalista.
As lições que ficaram
As contundentes críticas de Bakunin se confirmaram e seu pensamento nunca
foi tão atual: “Liberdade em socialismo é o privilégio, a injustiça; o socialismo
sem liberdade é a escravidão e a brutalidade”.
O socialismo autoritário, impregnado de idéias absolutistas, característica
de todos os movimentos marxistas, desenvolveu-se a partir da idéia e da ação
para a conquista e o fortalecimento do Estado – todas as doutrinas e ideologias
cujos adeptos visam à tomada de poder, com finalidade nobre ou não, ou são
totalitárias na sua essência – como o nacional-socialismo, melhor dizer, nazismo
– ou passam por estágios e etapas que acabam na intolerância pois:
1) Toda doutrina é considerada pelos adeptos como certa e eficaz;
2) Como a mais certa e eficaz;
3) Como a única certa e eficaz.
Ao alcançar esse terceiro estágio, toda e qualquer oposição é considerada
herética e dispondo de força física, no caso a conquista do poder do Estado, ela o
empregará para combater e eliminar opositores e até partidários dúbios e vacilantes.
Na União Soviética e em todos os países onde controlaram o poder foram-se
cumprindo as previsões de Rosa Luxemburgo sobre as propostas bolchevistas e
toda sua gestão da revolução: “A ditadura do proletariado seria uma ditadura sobre
o proletariado através das seguintes etapas; o partido usurparia as funções da
classe, o Comitê Central, usurparia as funções do partido, o Birô Político usurparia
as funções do Comitê Central e o
Secretariado Geral usurparia as
funções do Birô Político”. A
autocracia é, pois, o resultado real do
“Centralismo Democrático” de
Lenin.
No alvorecer de um novo
milênio, ante tudo o que ocorreu
neste século, face às dezenas de
milhões de mortes provocadas pelos
“socialismos” totalitários, nazismo,
fascismo, comunismo etc., só resta
um caminho para superar a barbárie:
o socialismo libertário.

[1Texto originalmente publicado na Revista Libertárias, nº 1, outubro/novembro de 1997. Jaime Cubero participou da reativação do CCS-SP nos anos 1980. Foi nessa época, um dos principais responsáveis por suas atividades. É sempre lembrado por
sua contundente inteligência autodidata, por sua generosidade e humor para com pesquisadores e militantes anarquistas.