FERRUA, Pietro.- O Fechamento do Centro de Estudos Sociais "Prof. José Oiticica"

O epíteto "sociais" desapareceu no decorrer da ditadura

Brasil- História do anarquismo FERRUA, Pietro (Piero) Michele Stefano (1930 - ....)

Para bem da verdade, houve dois fechamentos. O primeiro foi "manu militari" e aconteceu em 11 de outubro de 1969, por ordem do Quartel Geral do Comando de Transporte Aéreo do Ministério da Aeronáutica com a colaboração da Policia Militar e do Departamento de Ordem e Segurança Pública. Foi arrombada a porta da sede, situada na Avenida Almirante Barroso n. 6, sala 1101. A partir desse mesmo dia foram presos dezesseis membros do CEPJO.

Na minha qualidade de Presidente em carga desta Associação que, em data anterior ao golpe militar tinha sido declarada Entidade de Utilidade Pública (com isenção de Imposto) tive que responder das irregularidades de seu funcionamento e da presença de "material subversivo". Fui preso no Dia do Mestre (15 de outubro de 1969) mas libertado (na época pensei que "provisoriamente") no dia 18 do mesmo mês.
As vicissitudes do CEPJO já foram abundantemente narradas pelo Edgar Rodrigues no ensaio Os anarquistas no banco dos réus [1]portanto limitarme-ei a acrescentar só alguns detalhes.
O CEPJO permaneceu aberto um pouco menos de doze anos, como entidade legal, o que não prejudicou no mínimo atividades que sem ser legais ( e sendo até clandestinas) foram quase sempre conduzidas à luz do sol. Esta transparência, por incrível que possa parecer, até nos favoreceu, como resulta dos autos do processo. Os nossos interrogadores não podiam entender porque os presos políticos de outras formações ideológicas, negavam tudo, enquanto nós não só admitíamos tudo mas – segundo eles- quase nos gabávamos e sempre permanecemos tranqüilos. Por essa razão, no nosso grupo, os único a serem torturados foram alguns dos mais jovens que, por inexperiência, mentiram. Só muito depois tivemos confirmação que o torturador era aquele – sempre presente aos interrogatórios – mas só observando, que nós (Roberto das Neves e eu que fomos presos no mesmo dia, conduzidos juntos ao Quartel da Aeronáutica no Galeão e, às vezes, interrogados juntos) pensávamos ser o torturador. O tal de "algoz" acusava forte dores permanentes de estômago e o Roberto explicava-lhe que provinham de turbas psíquicas (a prática da tortura, que não podia ele mencionar mas que todos os presentes podiam adivinhar) e tentava convencê-lo a adotar uma dieta macrobiótica.
Roberto e eu continuamos fazendo propaganda anarquista dizendo que na democracia deve-se sempre garantir uma opinião minoritária e que o exercício da lógica exigia sempre alguém que se representasse como o "advogado do diabo". O Neves foi ainda mais longe, com aquele sotaque lusitano e a facúndia que ele possuía, quis demonstrar que afinal das contas eles (os militares e os policiais) também poderiam ser anarquistas e tornar-se-íam mais felizes e equilibrados se o fossem.
Naqueles poucos dias de prisão demos muitas risadas e houve só dois momentos difíceis. O primeiro foi o assunto do panfleto que ensinava a fabricação das armas e do qual quase todos tinhamos conhecimento ou uma cópia na nossa biblioteca. Não sei o que responderam os outros, mas me lembro do que eu respondi. Num primeiro tempo eu pensei que eles fizessem alusão ao jornal mensal Ação Direta, fundado pelo José Oiticica e que eu conhecia bem. Mas eles insistiam que não. Então pedi que me mostrassem a publicação. Não queriam. Insisti. Acrescentei que se eu reconhecesse eu admitiria tê-lo visto, lido ou possuido. Afinal cederam e tiraram da gaveta o folheto Acção Directa . Sorri, pois eu me lembrava. Admiti conhecê-lo. Disse que a ortografia era lusitana e que a publicação era anterior à época do regime militar, que tinha sido impresso a pedido do General Delgado (desertor do Exército Português da época do Salazar, e que eu tinha conhecido na sede da Editora Germinal cinco anos antes. A publicação tinha sido financiada por ele em função da Resistência em Portugal e não tinha nada que ver com as guerrilhas da América Latina. O coronel Veloso perguntou então se eu tinha tido na mão esse folheto. Disse que sim. Perguntou-me então o que eu fiz com ele, pois não tinha sido encontrado na minha habitação logo das diligências policiais. Respondi que tinha despachado para a Biblioteca do C.I.R.A. na Suíça. E era verdade. Insistiu para saber se eu tinha lido e respondi que não: por não ter nenhuma experiência militar não teria entendido. Nessas alturas eu revelei, o que aliás eles provavelmente já sabiam, isto é meu passado de objetor de consciência e minha prisão de quinze meses por ter recusado o serviço militar.
Roberto das Neves tinha sido interrogado separadamente, não sei se antes ou depois de mim, confirmando o que eu disse e acrescentando que qualquer cópia tivesse sido encontrada em casa de companheiros presos havia sido um presente dele. Ofereceu mais detalhes sobre a tiragem, a data de publicação, as circunstâncias, muitas das quais eu desconhecia. Sem que houvesse comunicação entre nós, o Roberto confirmou tudo o que eu e outros dissemos sobre este assunto. Claro que qualquer um de nós poderia ter usado esse manual para fabricar bombas e organizar uma resistência armada contra o governo. Por via das dúvidas, os inquisidores foram visitar os sítios pertencentes ao Movimento Libertário, nos Estados da Guanabara e de São Paulo. Não encontraram armas nem guerrilheiros, porém só alguns aposentados praticando agricultura biológica. E o negócio ficou nisso.
A segunda acusação era de que eu, como Presidente do CEPJO, seria o representante de uma organização terrorista internacional, o C.I.R.A., cuja sede encontrava-se na Suíça. Porque que eu tinha no bolso uma passagem para o Uruguai, acabava de chegar da Argentina, iria ao Chile dentro de um mês? Explicar as viagens não foi difícil, devido a minha profissão secundária de intérprete de conferências. Pude provar que eu até prestava meus serviços ao Ministério de Relações Exteriores do governo deles. Acharam contraditório. Fiz notar que a deontologia de intérprete é como a do médico, deve respeitar o segredo profissional. O chefe do estado ou do governo pouco se importa de minhas idéias com quanto eu transmita sua mensagem fielmente. Por meu lado eu não preciso concordar com aquilo que ele diz. Se eu tiver que contestar seus argumentos o faço, depois de acabar meu serviço e na praça pública (era uma época de grandes manifestações estudantis ás quais eu participava pois, além de ser professor na Aliança Francesa e na P.U.C., eu era também estudante, no sentido que eu estava inscrito num programa de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Os militares, porém, continuavam me acusando de receber ordens e fundos subversivos da Suíça. Pude provar que se houve algum envio de fundos, foi só num sentido, exatamente o oposto. Isto é tratava-se de uma percentagem sobre as cotizações pagas pelos membros do C.I.R.A.-BRASIL. Eram importâncias tão modestas, que os companheiros responsáveis da sede internacional do C.I.R.A. em Lausanne, me pediram que eu não mandasse mais dinheiro, porém livros em português para a biblioteca.
Convenci os militares de que eu não somente era o fundador da seção brasileira do C.I.R.A., mas também o fundador do C.I.R.A. internacional, nascido em Genebra em 1957 e transferido para Lausanne mais tarde, e que portanto eu era o único responsável de qualquer infração da qual pudesse ser acusado o organismo internacional. O argumento foi decisivo. Um suboficial que era (ou brincava de ser) mais amigável do que outros me disse que alguém tinha saído de avião para consultar seus superiores e saber se eu podia ser liberado. Perguntei se ele tinha ido para Brasília, mas o meu interlocutor declarou que isso ele não podia revelar. De fato, fui liberado e pude viajar ao Uruguai para meu trabalho.
Sobre o "mistério" de minha rápida libertação foram formuladas várias hipóteses:
a) minha esposa, sem eu saber, vinha diariamente (com as crianças?)ao Quartel e falava com um major encarregado do inquérito. Ele lhe prometia apressar as coisas o que ela acreditava. Ainda agora acha que foram seus choros que deram resultados;
b)
c) minha amiga (e aluna de italiano) Thérèse Willième, acha que Manoel Francisco do Nascimento Brito, dono do Jornal do Brasil a quem eu dava aulas particulares de francês (às vezes na sede do jornal, outras na casa deles ou na minha), que tinha amigos entre as altas patentes militares, movimentou-se para que eu e o irmão dela, André Willième (que , por casualidade, tinha sido preso no mesmo dia do que eu, mas por outro inquérito) fossemos liberados. O Nascimento Brito sabia de minhas idéias – que certamente não compartilhava –mas sempre foi cortês comigo e tinha me ajudado a difundir comunicados anunciando palestras do CEPJO, do CBEI [2] ou do C.I.R.A.-B [3];
d)
e) eu tinha avisado meus interrogadores que minha ausência numa conferência internacional seria notada (a cabine de italiano não poderia funcionar com o único outro intérprete disponível na América Latina) e causaria um "escândalo" internacional do qual o Brasil talvez não precisasse.
f)
Qual das três possibilidades foi determinante, nunca soube.
No Uruguai encontrei companheiros como Carlos Rama, Luce Fabbri, Eugen Relgis, Ruben Prieto, e toda a turma da Comunidad del Sur. O Prof. Rama, que bem me conhecia, pensou que eu ia ser preso uma vez que voltasse ao Brasil e me ofereceu hospitalidade e trabalho. Os companheiros da gráfica da Comunidad del Sur ( com quem almocei no centro da cidade) foram além de qualquer expectativa de solidariedade e ofereceram de hospedar os outros quinze companheiros presos , junto com suas famílias, se conseguissem asilo ou se pudessem chegar ao Uruguai por seus próprios meios. Haveria alojamento, comida e trabalho para todos. Agradeci, disse que eu transmitiria o convite aos companheiros pessoalmente, pois eu tinha resolvido voltar ao Rio pois não queria correr o perigo que minha família fosse presa como refém, como tinha acontecido em outros casos. Quando voltei ao Rio, os companheiros tinham sido quase todos libertados. Edgar Rodrigues, que tinha escapado à prisão devido a seu pseudônimo, foi quem manteve os contatos com as famílias dos presos e com os advogados.
Nessas alturas era urgente que nos reuníssemos para decidir o destino do CEPJO.
Foi ai que alguém (um advogado escolhido pelo Edgar?) redigiu a convocatória que me foi mandada para que eu a assinasse, como Presidente da entidade, e que foi publicada num número do Diário Oficial do mês de novembro de 1969. Eis o documento:

Centro de Estudos "Professor José Oiticica" Assembléia Geral Extraordinária

O Presidente, pelo presente Edital, convoca os Srs. Sócios para a Assembléia Geral Extraordinária, marcada para as 18 horas em primeira e 18,30 horas em segunda convocação, com qualquer número, do dia 20 de novembro de 1969, para se deliberar em definitivo, sobre a dissolução desta entidade cultural, tendo em vista os fatos conhecidos que tornam impossível a continuação de suas atividades. Nessa Assembléia Geral Extraordinária deverá ser eleito um liquidante, preferencialmente estranho aos quadros do Centro, para atendimento das disposições legais e estatutárias, com poderes de apurar o patrimônio e solver de seus compromissos financeiros.
(assinado) Pietro Ferrua- Presidente

É bem possível que haja tido duas reuniões, uma para discutir (e redigir?) o dito documento e a Assembléia Geral Extraordinária mesma. Isso só poderia ter ocorrido depois de minha volta de Montevidéu e antes da publicação no Diário Oficial em 11 de novembro de 1969. Só sei que entre 14 e 19 de novembro efetuei uma viagem ao Chile (com uma parada de 24 horas na volta) e que devo ter tido pouco tempo para contatos e reuniões. Tampouco me lembro da identidade de todos os assistentes à Assembléia Extraordinária que teve lugar na casa da irmã do companheiro Matos, situada na rua Joaquim Meier 142, no bairro do Meier. A meu ver estavam com certeza os seguintes: Edgar Rodrigues, Diamantino Augusto, Manoel Matos, Paulo Fernandes, Manuel Ramos, Fernando da Silva Neves. Talvez outros mais. Sei que não estavam presentes o Ideal Peres e a Ester Redes. Alguém nos informara que um dos dois estava muito abalado e o outro precisava cuidar dele. Se bem me lembro houve alguma hesitação em fechar legalmente o CEPJO, mas a vontade comum foi de continuar as atividades clandestinamente, como tínhamos feito durante o ano anterior pelo bastante concorrido congresso do Movimento Libertário do Rio de Janeiro, que, apesar das circunstâncias, reuniu mais de trinta pessoas.
Mais pormenores poderá provavelmente oferecer o Edgar Rodrigues, grande pesquisador e colecionador de documentos, que conseguiu esconder e preservar muito material precioso para a história do movimento anarquista, social e operário do Brasil e de Portugal.
Coube a mim, nos dias que seguiram a Assembléia de dissolução do CEPJO, depositar no tabelião a declaração aprovada e isso não foi sem dificuldades burocráticas.
Os autos do processo falavam de um tal de Pietro Michele Stefano Ferrua, italiano.
Podia eu provar que eu era brasileiro, pois estrangeiro não pode (ou não podia naquelas alturas) ser Presidente de uma entidade brasileira? Consegui produzir o decreto de naturalização assinado em 17 de maio de 1966 e registrado no Diário Oficial de 20 de maio do mesmo ano. Além do mais eu pude produzir a carteira de identidade, outorgada pelo Instituto Félix Pacheco, em 13 de novembro de 1969. Mas isso só indicava que eu era brasileiro e não mais italiano (é bem possível, aliás, que durante minha prisão os militares tenham me tratado mais cortesmente pensando que fosse estrangeiro e talvez sob a proteção da Embaixada da Itália e desconhecendo o fato que na Itália eu era considerado desertor) mas não provava que Pietro Ferrua e Pietro Michele Stefano Ferrua fossem a mesma pessoa.
Por grande sorte, um amigo meu advogado, Lambert de Athayde (pai de minha aluna Marcelle) tinha dirigido ao Tribunal da Guanabara uma petição nesse sentido em 1° de agosto de 1969. O despacho tinha sido rápido e pude produzir uma autorização do Tribunal, datada 24 de setembro de 1969, certificando que Pietro Michele Stefano Ferrua e Pietro Ferrua eram a mesma pessoa. O cartório não conseguiu mais encontrar desculpas para invalidar a dissolução do CEPJO. Não que eu folgasse em tomar uma decisão que tinha sido aprovada por uma Assembléia Geral mas que me deixava a boca amarga. O CEPJO tinha nascido antes de minha chegada ao Brasil, pois sua existência oficial data de 1958 e eu só visitei o Brasil pela primeira vez em 1961 e ali me estabeleci em fevereiro de 1963.
A história do CEPJO deveria ser dividida em dois períodos: o primeiro que vai de março de 1958 e até 1°de abril de 1964, durante o qual o funcionamento foi mais ou menos normal, com muita ênfase no curso de psicologia do Professor Newton Josetti. A primeira crise ocorrida foi à que se manifestou numa reunião em 5 de fevereiro de 1960, durante a qual três membros da associação propuseram que o CEPJO fosse fechado. Isso não foi aprovado e então Raul Vital e Seraphim Porto foram-se embora, enquanto o terceiro, Roberto das Neves, cessou de fazer parte oficialmente mas seguiu colaborando. Minha primeira visita ao CEPJO ocorreu em julho de 1961 quando visitei o Brasil pela primeira vez, em época de férias escolares na Suíça, mas meu envolvimento direto começou só em fevereiro de 1963 quando, foragido da Suíça, me refugiei no Brasil. Nos primeiros meses de minha estadia no Rio, durante os quais eu trabalhava nos escritório da firma de meu sogro, Max Lobo Filho, presidente da Emerson do Brasil, cuja sede encontrava-se na Avenida Rio Branco, passei a dar algumas aulas particulares na sede do CEPJO e recebi um jogo de chaves que, muito provavelmente, conservei até o fim. Nessas alturas compartilhávamos da sala com um grupo marxista, o que não criou problema até o golpe militar de 31 de março de 1964, quando eles abandonaram o local e dentro dele deixaram não só livros de propaganda mas também – com muita inconsciência- o caderno de endereço dos afiliados.
Naquela época eu morava no Leme, a um quarteirão ou dois de distância do Ideal Peres, que visitava muito regularmente. Nossa reação ao golpe militar foi diferente mas numa coisa concordamos: tínhamos que nos desfazer de todo o material marxista que podia por em perigo nossas atividades, pois se éramos orgulhosos de nossas idéias anarquistas não queríamos assumir a responsabilidade de defender às de nossos "primos" marxistas que não compartilhávamos no mínimo. O Edgar Rodrigues conta em seu livro, acima mencionado, as aventuras tragicômicas da destruição do material "subversivo" ocorridas nas primeiras semanas de abril mas eu, por não ter carro, não participei dessas vicissitudes. Ajudei de uma maneira muito simples: eu subia até a sede e descia com um pacote que abandonava nas imediações. O primeiro foi nas escadarias da Biblioteca Nacional, o segundo nas do Teatro Municipal, um terceiro na esquina, e assim a seguir. Não aconteceu nada.
Como disse, as reações dos companheiros ao golpe militar variaram. Contarei em outras oportunidades, a fundação da Liga dos Direitos do Homem (junto com Lícia Valladares), do Centro Brasileiro de estudos Internacionais (com Thamar Sette Pinheiro, Roberto Ballalai, Savas Carydakis, Manoel Maurício de Albuquerque), da seção brasileira do C.I.R.A. Alguém terá que escrever sobre as atividades do Movimento Libertário Estudantil, a editora Mundo Livre, etc.… todas iniciativas que surgiram do (ou tiveram lugar no) CEPJO. A nossa entidade talvez nunca tenha tido tanta repercussão quanta teve nos primeiros anos da ditadura: continuaram as aulas de psicologia durante mais um ano, abriu-se um cine-club, havia palestras semanais, etc.… O espaço era agora totalmente nosso, mas às vezes não bastava e muitas ocorrências tiveram lugar alhures: Associação Brasileira de Imprensa, Teatro Carioca, Colégio Brasileiro de Almeida, e nas chácaras do Movimento Libertário. Ajudou ter amigos e alunos particulares ligados à imprensa
carioca o que nos valeu anúncios no Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Última Hora, O Globo, O Pais.
Além de uma persistente sementeira cultural, houve também as atividades mais políticas, que não se desenvolviam na sede do CEPJO, para não ter que redigir atas, conforme estipulava a lei. Tudo isso não acabaria, e não acabou, de fato, com o fechamento oficial do CEPJO. Já sabíamos que continuaríamos a luta com todos os meios de que dispúnhamos. Entre 22 e 27 de novembro, aproveitando a oportunidade de um contrato de interpretação (Um seminário sobre transplantação de órgãos) em São Paulo, tomei contato com os companheiros paulistanos, notadamente com Germinal Leuenroth. Contei o que tinha acontecido no Rio (as prisões, a dissolução oficial do CEPJO) e discutimos também da cessão dos arquivos do falecido Edgar4 ao CIRA. Relatei também minha visita aos companheiros da Comunidad del Sur, do convite de hospitalidade que eles fizeram em favor das famílias dos companheiros presos no Rio, que não tinham gostado da idéia desse exílio no Uruguai pois achavam – e a história deu razão a eles – que as ditaduras militares se estenderiam também a outros países. Foi de fato o que aconteceu poucos anos depois com o próprio Carlos Rama (que teve que se refugiar no Chile e acabou depois na Espanha) e também com o Ruben Prieto, e outros companheiros uruguaios, que se exilaram na Suécia).
Logo depois de ter oficialmente dissolvido o CEPJO, eu quis registrar meu testamento no mesmo cartório. Apenas queria que em caso de desaparecimento meu não se perdesse a documentação que tinha acumulado (que se perdeu de qualquer maneira). Como meu herdeiro seria o C.I.R.A. da Suíça, tinha redigido o documento em francês. O tabelião teve finalmente sua vingança: recusou reconhecer sob pretexto de que não se podia autenticar um documento que não estivesse escrito no idioma do pais. Tentei protestar dizendo que eu pedia só a autenticação da firma: que importava o conteúdo? De nada valeu minha insistência. Então mandei para Lausanne o documento sem ser legalizado. Ficaram um pouco espantados, pois eu tinha somente 39 anos e respiraram só uns dias depois quando receberam notícia de que eu me encontrava nos Estados Unidos.
As coisas aconteceram muito rapidamente. Foi nos primeiros dias de dezembro de 1969. Eu teria três meses de férias que tinha previsto dedicar à elaboração de minha tese de doutoramento. Recebi um telegrama de minha sogra, a Doutora Blanca Lobo Filho que lecionava língua e literatura brasileira na Universidade do Estado, em Portland, no Oregon. Pedia com urgência que eu fosse ensinar um curso durante minha época de férias. Eu já estava com passaporte válido e visto de saída. Pedi e obtive imediatamente um visto turístico de professor visitante e sai no dia 8, chegando no dia 9 de dezembro. Fui logo apresentado aos colegas de D. Blanca, assisti a umas aulas, e foi-me explicado o que teria que ensinar e como. No dia 12 chegou minha família do Rio: era o aniversário do meu filho. A surpresa precedeu a alegria. Finalmente entendi tudo: sabendo que nunca teria deixado o Brasil de minha própria vontade, sobretudo em direção aos Estados Unidos, minha família tinha "inventado" esse contrato provisório de ensino. Aliás, não totalmente, pois de fato ensinei por um par de meses, mas para substituir minha sogra que tinha ido ao Rio para despachar nossos pertences e alugar o apartamento em que vivíamos. De fato eu tinha saído com uma mala só, trazendo pijama, escova de dentes e alguns cadernos de notas de cursos. Não tinha me despedido de ninguém e não sabia que não voltaria ao Brasil senão…quinze anos depois.
Só depois de minha família chegar é que eu entendi que tinha tido um "complô" para me "tirar das encrencas". O que que adiantava ficar indignado e protestar?
Eles tinham medo que me prendessem de novo e me torturassem, as crianças tinham que ser protegidas.
Minha sogra foi várias vezes ao Brasil. Conversou demoradamente com o Ideal Peres, que entendeu a situação. Pediu que eu ajudasse financeiramente (pois ia ter muitas despesas de advogados) porém mais tardes preferiu que eu comprasse e mandasse livros, em qualquer dos idiomas que ele pudesse ler. Nomeou-me (suponho que depois de ter consultado os companheiros) representante do Movimento Libertário do Rio de Janeiro5 e foi como tal que eu comecei a informar o movimento internacional do que havia ocorrido no Brasil. Continuei recebendo notícias dele e de alguns outros companheiros, o mais assíduo dos quais foi o Edgar Rodrigues. Tudo isso será relatado em outros artigos de próxima publicação. Portanto aqui se conclui a primeira parte de um discurso específico que, junto com outros meus e de outrem, vai constituir um repositório da memória coletiva das atividades anarquistas cariocas durante os anos da ditadura militar.
Pietro Ferrua

[1Rio de Janeiro, VJR-Editores Associados, 1993, p.206

[2Centro Brasileiro de Estudos Internacionais

[3Centro Internacional de Pesquisas sobre o Anarquismo: Seção Brasileira