FERRUA, Pietro.- Lembranças do Ideal Peres

LUCE, Maximilien (1858-1941). .Pintor, desenhista e litógrafoSIGNAC, Paul (1863-1935). PeintreFERRUA, Pietro (Piero) Michele Stefano (1930 - ....)MALEVICH, Kasimir S. (Kiev, 1879- Leningrad, 1935)document original spécialement rédigé pour le site "Recherche sur l’anarchisme"PERES, Ideal (1825-1995)
Hommage à Lucien Fontana Hommage à Kasimir Malevitch Remembrance of Maximilien Luce
Souvenir of Charles Henry Thinking of Paul Signac

Minhas relações com o movimento libertário brasileiro começaram nos longínquos anos 50. O primeiro companheiro com quem me correspondi foi o lusitano Edgar Rodrigues, cujos primeiros livros eu apresentei na imprensa anarquista suíça. Quando fundei o Centro Internacional de Pesquisa sobre o Anarquismo os companheiros cariocas sugeriram o então muito ativo Enio Cardoso como representante do Brasil no nosso novo instituto. Foi ele o primeiro a mencionar o nome do jovem companheiro Ideal Peres, do qual comecei a ler artigos nos jornais do movimento
(Ação Direta, Remodelações e outras pequenas publicações da época). O primeiro encontro com o Ideal aconteceu na sede do Centro de Estudos Sociais Professor José Oiticica (do qual, anos depois, tornar-me-ei presidente perante a lei) na Avenida Almirante Barroso em 1961 (julho e agosto, ou melhor, em 12 de julho de 1961). O Enio Cardoso, o Edgar Rodrigues e o Roberto das Neves tinham arrumado uma reunião especial dos companheiros (uns vinte compareceram). Falei do CIRA, do movimento suíço, bem como dos da França e da Itália, que eu conhecia melhor do que
outros naquelas alturas.
Eu já tinha feito um mestrado de português na Universidade de Genebra e não só conhecia o idioma (que eu praticava aliás diariamente por ter casado com uma carioca), como a literatura, a história e a geografia do Brasil. Na dita reunião chegou a minha vez de formular perguntas e, como eu estava então interessado em conhecer pormenores sobre as atividades do movimento brasileiro, quis saber quais eram os suplementos do Ação Direta que tinham saído. O Ideal respondeu que “esse jornal nunca tinha tido suplemento” e, olhando, ao redor de si, obteve a anuência dos companheiros. Insisti, pois, no mínimo um eu conhecia e tinha lido: “A Greve dos Tecelões”. Houve um momento de silêncio e logo estourou uma gargalhada geral, pois eu tinha razão, eles é que tinham esquecido e era o único suplemento que tinha saído na história do jornal.
“Puxa !”- exclamou o Ideal – “você é que está nos dando aulas nisso”. Ficou favoravelmente impressionado e me disse que o movimento precisaria de alguém como eu. Anunciei aos companheiros que eu estava ameaçado de expulsão da Suíça e que se isso acontecesse eu viria viver no Brasil (como de fato aconteceu dois anos depois).
Desde aquela oportunidade o Ideal me serviu de guia e me apresentou a várias pessoas que não freqüentavam mais o Centro. Lembro-me de uma viagem a Niterói, num domingo, que passamos na casa da família Bottino, uma visita ao professor Serafim Porto, outra ao professor Daniel Brilhante de Brito. Compareci também ao Centro no dia da aula de Psicologia ensinada pelo professor Ferretti e a segui.
Quando cheguei ao Rio em fevereiro de 1963, expulso da Suíça, retomei imediatamente contato com o grupo, e deu-se o caso que fui morar no Leme, na Avenida Gustavo Sampaio, a cem metros da habitação do Ideal e da Esther na rua Anchieta. Foi aí que nos conhecemos melhor.
Além das reuniões na cidade, eu o visitava em casa nos fins de semana. Às vezes passaríamos horas discutindo a sós, outras chegavam companheiros vários.
Um ano depois me mudei para Ipanema e nossos encontros periódicos se espaçaram. Raramente ele vinha à minha casa, se eu bem me lembro por ele mesmo receber visitas quase que regulares no sábado. Eu não só não tinha carro (o que limitava minhas andanças), mas também tinha deixado o emprego na firma de meu sogro (com um horário regular) para o de professor (com horas extravagantes) e também tinha começado um longo processo de revalidação de meus estudos anteriores por exigências do Ministério da Educação, passando pelo Colégio Pedro II (dois anos), pela PUC (mais um ou dois anos), na Universidade Federal do Rio de Janeiro (curso de doutoramento, que não acabei por sobrevir exílio nos Estados Unidos). Os meus novos afazeres fizeram com que eu encontrasse o Ideal menos amiúde, mantendo portanto relações só semanais. Mas quando a gente não se via, se telefonava ou se escrevia. Acho que o Ideal, durante os sete anos em que morei no Brasil, foi assim mesmo o companheiro que eu freqüentava mais (os outros sendo o Roberto das Neves que eu visitava no escritório dele toda vez que ia ao centro da cidade, ou o Edgar Rodrigues, com quem compartilhei muitos interesses sobretudo histórico-biográficos).
Dele eu possuo hoje 20 cartas, que não são a totalidade da correspondência que trocamos. Talvez apareçam outras, talvez tenhamos que considerá-las perdidas.
A ditadura militar censurava minha correspondência como resulta de documento datado de 15/X/1969 (Ofício n. 008/69 – IPM do Quartel General do Comando de Transporte Aéreo). Alguma correspondência foi seqüestrada no meu apartamento de Ipanema quando fui preso em 15/X/69, no dia do mestre. Outra correspondência foi confiscada pelo Correio (apesar de registrada) de Caxambu quando minha sogra tentou despachá-la para os Estados Unidos (aliás, ela foi presa por minha culpa pela Polícia Militar que a acusou de lidar com material subversivo). Mais cartas se perderam depois nas várias andanças pelo mundo : do Brasil aos Estados Unidos, daí para a França, da França para a Itália e de San Remo de volta para Portland. Os serviços postais, mesmo sem ditadura, não funcionam tão bem como quando foram criados e material precioso vai se perdendo.
Não são só as cartas do Ideal que desapareceram, porém também as de outros companheiros com quem correspondi: o Viotti de Caxambu, o Leuenroth de São Paulo, os já mencionados Edgar Rodrigues, Roberto das Neves, Enio Cardoso, o Serafim Porto e outros companheiros do Rio, de Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador.
Também cartas de escritores que pouco (Eduardo Frieiro, Carlos Drummond de Andrade) ou nada tinham a ver com nosso movimento (Henriqueta Lisboa, Ivan Lins, Paulo Ronai, Oscar Mendes e mais outros). Mas as que sobram são suficientes para esboçar um retrato e ajudar a estabelecer uma trajetória das atividades do Ideal, um dos mais ativos militantes do Movimento Libertário do Rio de Janeiro, antes de minha chegada ao Brasil, durante minha estadia, depois de minha ida ao exílio e até sua prematura morte.
Meu entrosamento com o Ideal foi quase que total, apesar dele ter mais fé na psicologia do que eu (eu não assistia às aulas do professor Ferretti, organizadas, freqüentadas e lisonjeadas pelo Ideal) e menos na colaboração com alguns componentes do marxismo do que eu.
Verdadeiros desentendimentos houve só dois. O primeiro foi logo da instauração da ditadura militar em 1o de abril de 1964 ! Considerava-a ele como um “peixe de abril de mau gosto”, mas achava que os militares brasileiros eram herdeiros de uma tradição liberal e maçônica. Eles teriam colocado “tudo em ordem” e devolvido o governo aos civis. Aliás, o Ideal não foi o único a adotar essa atitude, que era compartilhada pela quase totalidade dos companheiros brasileiros enquanto os portugueses e eu mesmo, talvez por ter mais experiência de ditaduras, fomos mais duvidosos desde o primeiro dia. Apesar disso, o Ideal não deixou de se preocupar e cumpriu mais do que qualquer um a primeira tarefa, que era a de nos desfazer de toda a propaganda marxista que se encontrava no local da Avenida Almirante Barroso que em 1964 nós compartilhávamos com um grupo comunista. Muito irresponsáveis, eles não só deixaram livros e folhetos, mas até lista de endereços que teria permitido à Polícia Militar prender ou indagar uma porção de pessoas.
Fomos nós que tivemos de nos desfazer do material deles de todas as maneiras possíveis. Eu, como não tinha carro, limitei-me a recolher uns pacotes de livros bem acondicionados, à mão, que eu abandonava na Cinelândia em paradas de ônibus.
O Ideal, que tinha carro, junto com outros companheiros, transportou quantidade de livros muito longe e correu o risco de ser parado por patrulhas militares. Este episódio é narrado num dos livros do Edgar Rodrigues. Depois de uma leve hesitação inicial, o Ideal foi entre os primeiros a reconstituir o CEPJO e suas atividades. Entre estas havia iniciativas culturais que ele e eu organizamos (palestras de artistas, professores, escritores, cineastas) como havia atividades mais políticas como um congresso clandestino na casa do companheiro Mattos (ao qual compareceram uns trinta companheiros, apesar das circunstâncias) para o qual o Ideal e eu redigimos um documento de base. Este documento existe e eu seria incapaz de dizer qual foi a parte redigida por ele e qual a minha contribuição, pois a versão que sobrou foi a final, já contendo a colaboração dele e, muito provavelmente, também as observações dos companheiros após a discussão.
O texto foi publicado no Bulletin de la CRIFA no 10 de maio-junho/71 e seria interessante cotejá-lo com a redação inicial (por mim apresentada) o que talvez permitiria descobrir o aporte exato do Ideal.
Se eu bem me lembro, o item que levantou mais discussão foi a questão da guerrilha. No documento inicial havia uma condenação dos episódios da guerrilha rural, mas na última hora eu tinha levantado a exceção pela guerrilha urbana devido aos acontecimentos recentes do rapto do embaixador americano, que tinham permitido a libertação, se eu bem me lembro, de uns oitenta presos políticos. Aquela ação nos havia parecido de uma grande eficácia e tinha originado em alguns de nós uma certa admiração. A mor parte das cartas do Ideal a mim dirigidas nos Estados Unidos durante os anos da ditadura não contém nenhuma menção do meu nome ou do nome dele segundo instruções que ele mesmo me mandara além das cartas, através de turistas ocasionais (geralmente estudantes meus americanos que iam de férias ao Brasil e que eu mandava visitar o Ideal ou minha sogra, que ia ao Rio uma vez por ano).
Eu tinha aberto uma caixa postal e explicado ao diretor do correio de Portland nos Estados Unidos que, devido à necessidade de burlar a censura militar brasileira, o meu nome ia ser estropiado (ex.: Peter Fer) ou substituído por nomes fictícios, ridículos ou criativos (ex.: James G. Fraxis, G.Rossi/Abtn van Pedra/Lowndes Rei Znan). Por outra parte o Ideal nunca assinava as cartas a não ser com iniciais ou pseudônimos. Raramente ele usava a própria letra e na quase totalidade dos casos as cartas deles eram datilografadas. A linguagem usada era de tipo esópico: muitas alegorias e subentendidos. Com alguma rara exceção nelas dominava o bom humor e o Ideal divertia-se muito a dissimular as mensagens utilizando imagens literárias ou religiosas. “K”, por exemplo, significava Kafka, ou seja o processo no qual dezesseis dentre nós estavam envolvidos. Os “estudos da Bíblia” significavam a “pesquisa anarquista” e assim a seguir.
Minha tarefa era mandar relatórios para a CRIFA (vários dos quais foram publicados no Boletim deles) e representar o Movimento Libertário do Rio de Janeiro junto à IFA. O que eu fiz entre 1970 e 1985 (logo de minha primeira visita de volta ao Brasil, quando eu me dei conta de que havia uma liberalização que permitia nossas atividades e a difusão de nossas idéias mais abertamente e achei que o Brasil não me precisava mais como porta-voz).
Em vez de ajuda financeira (como eu tinha começado a fazer muito modestamente no primeiro ano do meu exílio). O Ideal me pediu que eu enviasse livros. Nunca conferi com ele para ver quantos chegaram, porém sei quantos eu despachei, pois eu fiz uma ficha para cada um que eu mandei e o total é de 252. Esse número não compreende os livros oferecidos por autores e editoras do movimento internacional que receberam meu apelo e mandaram livros diretamente.
Alguns livros eu escolhia entre os que saíam e não tinham um título muito, absolutamente anarquista (a censura teria descoberto) outros ele me pedia, sobre assuntos especializados como psicologia ou estudo dos kibbutzin.
No Bulletin de la C.R.I.F.A n. 13 (dez 1975-Fevereiro 1976) p. 10-11 aparecem umas recomendações assinadas pelo “correspondente internacional” do MLRJ (eu) segundo instruções recebidas do Ideal.
Pedia-se aos companheiros que continuassem a mandar nossas publicações aos endereços conhecidos, mas só uma cópia de cada vez. Ao se tratar de envio de pacotes de imprensa, o comunicado pedia que fossem enviados ao companheiro Marzocchi que sabia como despachá-los, isto é, conforme instruções que eu mesmo lhe dava e que variavam cada ano: através de companheiros suíços que iam ao Brasil cada ano (o casal Gremaud, por exemplo) através da Aliança Francesa (onde eu havia ensinado), etc...
Entre as 18 cartas do Ideal atualmente em minhas mãos, as primeiras três são dirigidas a meu endereço de Ipanema, portanto precedem minha saída do país. A primeira traz a data de 10 de maio de 1969 e é muito importante, pois é a que propõe a Assembléia Geral do Movimento Libertário para uma data ainda não estabelecida e que deveria tomar lugar na minha casa, mas acabou tendo lugar na casa do companheiro Mattos por várias razões: tinha mais espaço, era mais central e (supunha-se) menos controlada. A ordem do dia apresentada pelo Ideal estava dividida em duas partes: a) informativa, b)Teórico-prática. A primeira consistiria num relatório de atividades do CEPJO, do CIRA-Brasil, do MEL (Movimento libertário Estudantil), com mais um sobre as relações com outros grupos do Brasil e movimentos no exterior. A segunda parte deveria ser a definição da posição do Movimento libertário e das atividades de propaganda a serem adotadas.
A segunda carta é datada de 11 de agosto (o ano não está especificado, porém é fácil de se estabelecer por evidência interna). É posterior à reunião na casa do Manoel Mattos e está dividida em 5 parágrafos numerados. O primeiro se refere a uma carta por mim dirigida a Sônia Oiticica (filha do finado José). O segundo menciona a reunião do CIRA (de 31 de julho ???) na qual ele expressa algumas dúvidas sobre a colaboração prometida pela Eliza e um pouco de desconfiança em relação ao Dorival. No terceiro ele se revela duvidoso quanto às convicções dos jovens do MLE.
O quarto contém elogios sobre a apresentação do meu documento na reunião “clandestina” em vista de publicação (no exterior). No quinto e último me transmite boas notícias do grupo de São Paulo (ele mantinha relações diretas com Pedro Catallo, Jayme Cubero e Germinal Leuenroth) que estava cogitando reabrir o Centro de Estudos Sociais.
A carta seguinte é de 25 de agosto do mesmo ano e manifesta uma certa impaciência ao reclamar o documento que eu tinha lido na já mencionada reunião.
Passaram mais de quarenta anos e não me lembro de quais foram as razões da demora. Certamente foram várias: uma viagem profissional à Argentina, exames de doutorado que eu estava preparando ou prestando e provavelmente o fato de ter que datilografar um documento de uma dúzia de páginas (sempre fui lento nisso e permaneço até hoje, na digitação ao computador). A insistência é devida também ao fato de que esse documento que ia ser enviado a um boletim internacional ia ser, proposta do Ideal, mimeografado e distribuído no Brasil.
Há uma alusão também ao companheiro Lijer que quer ver um de nós com urgência. Como ele morava em Brasília, e por ser advogado, talvez tivesse descoberto a existência de um inquérito sobre nós. Não conseguimos aceitar o convite dele, porém isso não teria mudado em nada nosso comportamento em relação às prisões que ocorreram umas semanas depois. Das 17 outras cartas só uma foi dirigida à Suíça e todas as outras foram mandadas à caixa postal de Portland. A primeira é datada River (ou seja, Rio de Janeiro) em 14 de março de 1970. Começa com “Dear Richards” e é assinada Pinelli (o que demonstra que o Ideal estava a par dos acontecimentos de Milão de dezembro de 1969). Informa ter recebido minha carta de 25 de fevereiro, mas não a de dezembro (a primeira que lhe mandei de meu exílio americano, onde cheguei em 9 de dezembro de 1969) com o comentário “o vento levou” (e é o início de uma série de cartas perdidas, apesar das precauções tomadas). Menciona o primo Edgard, isto é, o companheiro Correia. Confirma ter recebido três pacotes de livros por mim despachados que chegaram abertos, devido ao “interesse extraordinário dos funcionários por temas de cultura geral” diz ele. Continua dizendo que “sobre nossa comum crença e filosofia Zen” (obviamente o anarquismo) “tenho a informar que aproveitando o Carnaval estive no santuário” (isto é, “Nossa Chácara” perto de São Paulo onde houve, evidentemente, um encontro de companheiros).
Fala, a seguir, de “dois grupos entregues a preces e meditações” e um mais se criando “os três federados poderão produzir ótima difusão do Zen” (trata-se dos grupos de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro que formam o então Movimento Libertário Brasileiro). Informa ter visto dois filmes sobre anarquismo o Malatesta ( do Peter Lilienthal) e o Sacco e Vanzetti (do Giuliano Montaldo).
Além de gostar muito do humor expresso na carta, folguei muito em comprovar que o Ideal estava de novo muito ativo e tinha superado uma breve fase depressiva devida a seu internamento forçado. Minha prisão tinha durado só três ou quatro dias, mas a dele cerca de um mês e o tinha debilitado bastante.
A carta seguinte não leva data nem assinatura, mas não me ocorre nenhuma dúvida em atribuir-lha: reconheço os caracteres da máquina de escrever, a caixa postal do remetente no envelope. A razão é que ele me deu notícias do processo.
Começa reconstituindo a cronologia das prisões. A primeira aconteceu já em 1o de agosto e a “vítima” foi Eli Briareu, um jovem soldado da aeronáutica, de sua namorada Tânia Alves Pinheiro e de sua cunhada Nádia Alves Pinheiro.
Torturado, deu o nome dos outros freqüentadores do CEPJO. O Eli era amigo de alguns membros do MEL mas não conhecido como militante nosso.
As prisões seguintes foram de Ideal Peres , da família Costa, um barbeiro anarquista português de 67 anos e seus três filhos Eliza, Roberto e Antonio Filho, acontecidas em 8 de outubro. Outros jovens presos foram Carlos Alberto, Rogério, Maria Arminda e Rui Silva. Os jovens foram os únicos a serem torturados (choques elétricos e espancamentos). Em 15 de outubro foram detidos Roberto das Neves, Pietro Ferrua, Fernando Neves, Esther de Oliveira, Antonio Correia, Manuel dos Santos, Miguel, Paulo Fernandes.
Alguns companheiros foram roubados, por exemplo o próprio Ideal Peres da casa do qual desapareceu dinheiro líquido, ouro e jóias. A carta de 26 de junho é dirigida ao irmão Tao (eu) e assinada pelo irmão Tcha-Ou acusa recebimento de mais um pacote de livros (“textos sagrados de nossa comum religião Zen”) anarquistas, entre os quais “o do irmão Krop”. Faz alusão a jornais também distribuídos a “novos iniciados” dando-me a entender que prossegue a obra de proselitismo.
Dá-me, como sempre, notícias dos companheiros por mim conhecidos: o Roberto das Neves , vítima de um assalto e com fêmur fraturado, enquanto o Edgar Rodrigues continuava escrevendo e deixando a publicação para tempos melhores. Fala-me da situação econômica e política do país. Me pede material da Biblioteca do CIRA na Suíça e me fala de nosso processo (“o livro de K”).
A carta de11 de outubro é dirigida ao companheiro Landauer e assinada Eliseu. Lamenta que minha carta de 30 de agosto tenha levado seis meses a chegar. Revela-me que alto magistrado vai testemunhar em nosso favor no processo por ter sido amigo de família e aluno das aulas de psicologia do CEPJO (esse episódio corajoso é narrado num dos livros do Edgar Rodrigues). Informa sobre visita de minha sogra. Confirma receber periódicos da Argentina, Itália, Inglaterra, França, México, mas gostaria de receber mais. Prevê ótima conclusão do processo. Em 30 de junho de 1970 informa ter ido a São Paulo para cuidar do arquivo (posto em salvo) do finado Edgar Leuenroth. Parece que a situação do movimento paulistano é mais tranqüila do que a do carioca enquanto no Rio Grande do Sul as atividades continuam ao ar livre e os companheiros tem até publicado obras do Daniel Guérin et do Errico Malatesta.
Uma carta não datada e não assinada é prêmio facilmente atribuível pelo conteúdo ao Ideal. È dirigida ao “caro Fritz”, despachada do Leme em 29 de setembro de 1973. O companheiro informa terem chegado obras de Stirner, do Maîtron, do Thoureau e texto sobre kibbutzim, ecologia e história do anarquismo. Fala de uma reunião no sítio, do restabelecimento da saúde por parte do Roberto das Neves. Anuncia o terceiro volume de uma história do movimento operário e anarquista no Brasil pelo Edgar Rodrigues. Avisa que livros nossos publicados na Argentina e na Espanha estão aparecendo nas livrarias. Breve alusão também ao processo e às dificuldades burocráticas : o Ideal era médico para alguma repartição oficial onde ele teria dificuldade de trabalhar devido ao inquérito militar e policial.
Em primeiro de maio de 1974 expressa muito otimismo em relação à Espanha e também ao futuro do Brasil. Diz que o Edgar Rodrigues está agora escrevendo sobre a história do movimento em Portugal (“na origem e desenvolvimento do fado em terras do Cabral”). As pesquisas brasileiras ele já concluíra com o terceiro volume “da história do Carnaval do Brasil”. Passa a dar-me notícias do Roberto das Neves bem como da turma de São Paulo e da fazenda do movimento. E, mais uma vez, conclui pedindo mais e mais notícias, mais e ais contatos, e segue material de leitura.
Em 21 de fevereiro de 1974 avisa a chegada de mais um pacote de livros que foram controlados porém aprovados. Sendo época de Carnaval, houve uma reunião na nossa Chácara do nosso sítio (o “santuário”) Lamenta e escassez de imprensa internacional do movimento que com absoluta certeza era enviada mas misteriosamente (!) extraviava-se. Saúda a saída de um livro sobre Proudhon e a continuação das edições argentinas (a Editorial Proyección só parará suas atividades em 1976).
O Roberto das Neves, devido à longa convalescência, entrou em dificuldades financeiras e estava fechando o negócio. A de 13 de junho é dirigida ao Ricardo Neri. Manifesta entusiasmo por notícias recebidas de Portugal onde os companheiros estão se reunindo, publicando um jornal e falam até em televisão. Sugere numerar o pacote de livros de agora em diante, para conferir os que faltam (pena não ter pensado em numerar as cartas também). Anuncia com orgulho que dois dos três tomos do Edgar Rodrigues estão no prelo. Passa a falar da inflação e da situação econômica. Assina Bravo Red, porém acrescenta excepcionalmente umas linhas manuscritas.
A 5 de agosto de 1974 é dirigida ao “Dear Nixon”. Notícias alentadoras do movimento de Portugal e de São Paulo, bem como do Roberto das Neves (recuperando forças) e do Edgar Rodrigues (escrevendo incansavelmente).
Lamenta só a rara chegada de publicações anarquistas internacionais “alguma coisa pinga da Argentina, pouquíssimo da Itália, o resto é silêncio”.
A de 14 de fevereiro de 1975 (data do carimbo postal) não tem nenhuma outra indicação de data no interior. Começa com “Estimado Cardo” e assina “Edu”.
As precauções maiores são devidas a um novo processo, desta vez administrativo e dirigido só contra ele. Pede que não se enviem mais pacotes de livros e correspondência bem crípitica. Evitou também encontrar minha sogra que ele bem conhecia e apreciava e que estava de visita ao Brasil. Apesar das preocupações expressadas não deixou de fazer uma visita ao sítio na época do Carnaval.
A seguinte leva a data de 24 de abril, no interior, mas o carimbo postal de 27 de maio. Parece ter recebido mais livros, despachados como ele pedira, um de cada vez. Fala-me do processo que de fato torna-se kafkiano pois será julgado em Brasília sem ele estar presente e sem possibilidade de apelo. Além disso, cito-o “se condenado saberei, se absolvido nada será comunicado, ficando assim na dúvida”.
Dá-me notícia dos arquivos do Edgar Leuenroth (“o Patriarca”) “parcialmente vendido pelo filho da p..” (o Germinal Leuenroth) a uma universidade. O arquivo havia sido oferecido ao CIRA da Suíça, mas a operação não chegou à conclusão antes de minha saída imprevista do Rio de Janeiro em 8 de dezembro de 1969. Os companheiros porém reagiram bem e como havia bastante coisas em duplicata foi secretamente constituído um segundo arquivo, zelado pelo companheiro espanhol Martinez e que visitarei quando voltar pela primeira vez ao Brasil em 1985. Informa-me que, aproveitando as férias de Páscoa os companheiros se reuniram no sítio paulista, uns quarenta deles (que, com família, chegavam a mais de sessenta) para discutir de assuntos de atualidade.
A carta de 1o de outubro de 1975 foi despachada pelo correio no dia 23 do mesmo mês. A discrepância entre as duas datas, já acontecida com a data anterior (e outras antes ou depois) indicam provavelmente uma recrudescência da censura cuja tarefa torna-se mais cumprida. Informa estar recebendo minhas encomendas “com freqüência”, por serem bem acondicionadas (eu usava envelopes acadêmicos e dissimulava nossa imprensa e livros dentro de publicações médicas). Está também recebendo o órgão anarco-sindicalista A Batalha de Portugal. Nada é destruído, mas vai enriquecer o arquivo Leuenroth de São Paulo. Fala depois do fim do monopólio de Estado da Petrobras e da repressão militar contra jornalistas e advogados que protestam. Um aperto é também exercido sobre editores, teatros, indústria cinematográfica. Pede livros do B. Traven recomendando que as encomendas sejam enviadas para a Sra. Oliveira (outro nome pela companheira Esther Redes, esposa do Ideal).
A seguinte, datada 27 de dezembro de 1976, foi despachada pelo correio no dia 29, indicando um relaxamento da censura. Acusa recebimento de meu livro sobre os anarquistas na revolução mexicana que define “um trabalho magnífico em termos de pesquisa e estudos” e do qual deplora (com razão) a qualidade do papel.
Me põe a par da catalogação do Arquivo Leuenroth na Universidade de Campinas e de uma tese redigida (aproveitando esse material) pelo professor Boris Fausto, continua mencionando outros trabalhos de pesquisa em curso de publicação, identificando alguns dos autores.
Passa a dar notícias do Roberto das Neves expondo as publicações da Editora Germinal na Feira do Livro de Niterói (outra carta de um jovem amigo ex-aluno meu me conta que comprou o Anarquismo de Daniel Guérin contendo meu prefácio). A carta é assinada “Red” e conclui dizendo “não deixe de enviar as publicações que você puder dispor, pois isso é ouro para nós “.
Em 31 de agosto de 1977 o cabeçalho é “Dear Sacco” e a assinatura “Bartollo” (óbvia alusão ao Bartolomeo Vanzetti). Recebeu alguns livros, porém tem a impressão de que algo faltava. Fala muito de política nacional e o faz abertamente de uma maneira não velada e muito mais crítica que de costume. Minha dedução é que a situação está madura para uma mudança geral e que ele , pessoalmente, está se comprometendo mais e mais. Outra novidade é o lançamento de uma editora nossa que publicará um livro por ano.
A última carta da série cronológica leva a data de 10 de junho de 1978. O carimbo postal é do mesmo dia o que indicaria ausência de censura. É dirigida ao Peter Fer apenas dissimulando meu nome e é assinada pelo Xico Tavares. Faz alusão a uma encomenda que eu despachara seis meses antes e que “produziu uma alegria imensa”. Passa a me descrever o conteúdo do pacote e conclui “tudo isso é extraordinariamente importante para a minha elevação espiritual e peço que me envies essas obras tão preciosas, que por outras vias nunca chegam em nossas mãos”. Pede informações sobre um congresso que teve lugar em Carrara. Refere-se ao acervo de Campinas e seu grande sucesso em inspirar teses de doutoramento.
Informa-me da saída de um jornal nosso na Bahia que de fato me manda por via aérea. Desta vez sou eu que jubilo, sobretudo com o título O Inimigo do Rei. Possível que a censura esteja tão despreparada !
Há mais uma carta que não consigo datar exatamente pois não contém no interior senão o no 14 (que pode ser de qualquer mês). O carimbo postal é ilegível. É dirigida ao sr. Kissinger e assinada R. Micho. A evidência interna só indica duas datas limites pela menção do Watergate e do novo endereço do apartamento da rua Anchieta, o 1204. Portanto, só pode ser posterior a um dos acontecimentos conhecidos ligados ao escândalo de Washington: depois de 1971 e antes de outubro de 1975. Não apresenta nenhum interesse especial pois é muito breve e é sobretudo um lembrete e pedido de notícias.